segunda-feira, 5 de novembro de 2012


Um Súbito Encontro

Eu sou terrível é bom parar e desse jeito me provocar.
Ufa! Que preguiça, mais um dia começando. Preciso trocar essa música do meu celular. Me modernizar. “Eu quero tchu, eu quero tcha, eu quero tchu, tcha, tcha”. “Agora eu fiquei doce, doce , doce”. Acho melhor ficar com Roberto Carlos, talvez uma música mais atual, romântica... adoro o Roberto.
Mas vamos menina, o dever te espera. As aulas no Colégio. O curso de Espanhol. Academia. E, como ninguém é de ferro, à noite o barzinho com as amigas. É sexta feira. Dia de por a conversa em ordem. Ih... ia me esquecendo. Também tenho boas noticias. Hoje, quinze anos de serviço, isso significa nova licença prêmio. Vou utilizar em minha viagem à Espanha: Barcelona, Madri, olé... a terra de meus avós. Só não gosto de touradas, não posso ver mau trato a nenhum animal. E vê-lo morrer então, não posso ver nada morto. Pessoas então, nem pensar, nem em velório vou. Bem posso até ir mas fico bem longe do defunto.
Hoje não posso me atrasar, não posso faltar, mais que isso vou chegar quinze minutos antes para garantir o meu dia. Finalmente mais um sonho esta perto: minha viagem.
Estou feliz, vivendo neste pequeno apartamento, 56.  Nos jardins. Mesmo não vendo nenhum jardim, nem pássaros, nem bancos nas praças. Tudo prédio, asfalto e concreto. Diferente de Cabrália, de onde vim há dezesseis anos. Lá os pássaros cantavam, as arvores eram alegres com suas flores, a natureza sorria, as pessoas lhe diziam bom dia.
Me levanto e olho no espelho, cara de sono, grandes olheiras e essa camisola de golfinho com a incrível mensagem: Lembrança da Praia Grande. Preciso me modernizar. Uma camisola, mais sexy, transparente. Parte dos seios de fora, afinal a plástica serviu para que? Mas para que? Quem sabe hoje, um novo namorado: jovem, bonito, alegre, rico. Menos. Menos. Sem muitas exigências! Tá bom, deixo apenas pelo rico, o resto a gente arruma.
Preparo o meu desjejum. Hum...que chique... Normalmente falo café da manhã. Mas hoje, um dia especial falarei desjejum. Café, leite, pão integral sete grãos, queijo, mamão(mas tem que ser papaia), banana,  iogurte e uma mistura com farelo de trigo, quinoa, gergelim, linhaça, aveia e outras coisas que não me lembro. É quando melhor me alimento e sinto  enorme prazer por ser um momento apenas meu. Cafeína para dar uma energia extra, proteínas, carboidratos, vitamina D. Sabe-se lá quando vou almoçar.
Epa! Meu relógio biológico já começa a despertar. Eu acho que meu relógio biológico é tipo suíço, pois sempre desperta na hora certa. Tenho amigas que os relógios biológicos são tipo do Paraguai pois passam dois, três até uma semana sem despertar.Deve ser horrível. É melhor eu atender esse despertar...e logo.
Queria um super chuveiro, desses que sai um monte de água. Tem propagandas que a água cai como cachoeira. Deve ser mentira. Me viro com minha duchinha. Dá para o gasto. Debaixo dela faço coisas que até tenho vergonha de contar. Escovo os dentes com o chuveiro aberto. Me ensabôo com a água caindo. Tudo diferente do que ensino aos alunos. Ah...que belo banho para começar um belo dia.
Me enxugo, como adoro essas toalhas...fofinhas....cheirosas...
Alguém bate na porta. Essa hora? Devo estar sonhando. Não acordei direito. Ouço novamente. Alguém bate na porta. Essa campainha novamente com defeito. Preciso atender. Me enrolo na toalha. Abro a porta, apenas uma fresta, com o pega ladrão trancado. Ninguém. Estranho eu ouvi as batidas. Olho para o piso. Alguém deitado na minha porta. È pegadinha. Quem pode estar armando essa? Percebo que é um homem. Pergunto o que deseja. Não me responde. Pergunto novamente. Novo silencio.
Destravo o pega ladrão e me arrisco a abrir mais um pouco a porta. E um homem bem trajado, com gravata, bons sapatos. Por que estará nessa posição? Desconfio de uma câmara oculta. Olho para o seu rosto. Seus olhos abertos, esbugalhados, inertes, como todo o corpo. Um calafrio me percorre a espinha. Estará morto? Ponho a mão perto de seu nariz: não há respiração. Quase desmaio. A toalha que me cobria cai. Fico nua. Por sorte ninguém no corredor. E sorte maior ainda o prédio não ter se modernizado. Não existem câmeras nos corredores, elevadores, portaria ou no portão. Serão instalados a semana que vem.
Lembro do morto, ali a meus pés. Penso em por a mão no bolso de seu paletó. Procurar documentos, mas ficariam as digitais. Arrastá-lo até o elevador e apertar o térreo, é muito pesado e alguém poderia me ver. Puxá-lo para dentro de casa. Também não é uma  boa ideia, em poucas horas estaria com mau cheiro e depois como explicar à polícia. Polícia? Pelo amor de Deus. Longe disso.
Fecho a porta  e fico ali encostada enrolada, na toalha. O que fazer? Preciso sair sem ninguém me ver. Tudo tem que parecer que o morto chegou depois que sai para o trabalho. Não vi nada. Não sei de nada. O Colégio! Não posso me atrasar. Justo hoje me acontece isso. Parece brincadeira, um morto na minha porta. Tenho 20 minutos.
Vou me vestir rapidamente. Calcinha nude...hoje não, preta? Apesar do morto não estou de luto. A vermelha, tudo pode acontecer, melhor prevenir, ou seja, estar pronta. E o defunto...é casado, tem filhos, pai, mãe, como veio parar aqui? Um vestido ou uma calça? Melhor um vestido, mais rápido, e sem sutiã. Minha plástica ficou bonita...perfeita. E o defunto? Terá trabalho? Estão esperando-o no escritório? No banco? O que veio fazer aqui? Uma sandália. Estou pronta. Faltam 10 minutos. Dá tempo. Não vou perder minha licença premio.
Um problema. Como sair?
No corredor não há muito risco de ser vista. O pessoal do 51 é feirante, saíram cedo. No 52 moram dois estudantes que vão à faculdade à tarde. O 53 está vazio. O casal que mora do 54 está viajando. Restam os velhinhos do 55 que acordam depois das 9:00 horas.
Pego minha bolsa. Confiro. Material do colégio, do Espanhol, roupa da academia, documentos, vale refeição, tudo certo.
Abro a porta devagar. Quem sabe não tem mais nenhum defunto. Engano, ele está ali. Imóvel, nem uma mexidinha. No corredor, ninguém. Torço para que os velhinhos não tenham esquecido de tomar o faixa preta e estejam dormindo tranqüilos. Não olho mais para o morto. Como vou passar? Pular a cabeça, o tórax. Melhor pular as pernas. Olhando, para o alto, pulo(Não sei se tem essas virgulas ou não). Uma porta bate. Isso me imobiliza. É no andar de cima. Adeus, Senhor defunto! Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Descanse em paz, mas não precisava começar esse descanso na minha porta.
Ufa... entro no elevador...ninguém.
Vou pela portaria ou pela garagem? Pela garagem, não tenho carro, posso me comprometer. Arrisco a portaria. Walter, o porteiro, está agachado atrás do balcão. Passo ligeiro. Não me vê. Enfim, na rua. O colégio fica a dois quarteirões, tenho 10 minutos. No caminho deve existir um orelhão. Sim, me lembro, existe. Na esquina da padaria. E se não funcionar? Olhe lá é ele. Está inteiro. Meu coração bate mais forte. Deu linha. Disco 190.
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Preciso fazer uma denuncia.
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Um cadáver no corredor do quinto andar, em frente ao apartamento 56, no prédio da rua dos Colibris, 1151.
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Descobri descendo as escadas, é meu exercício matinal.
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Tentei avisar, bati na porta, ninguém atendeu.
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A campainha? Está com defeito.
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Meu nome, não, é uma denuncia anônima.
Desligo.
Corro para o colégio, a campainha está tocando. Cheguei a tempo. Não perdi minha licença-prêmio. 








Autora: Maria Inês Mellado Matheus

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