Para Refletirmos ...
ESCREVER É TRISTE
Escrever é triste. Impede a
conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se
reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão
dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas
de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que
está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se
reduzir a marginalia, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do
dicionário. O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o
sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz em você, porque com você não é possível
contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior
cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus
escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos
outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino.
Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu
jantar de noticias um terremoto, uma revolução, um adultério grego – as vezes
nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para
verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado ai, camisa
aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a
angustia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um
deles. Ah, você participa com palavras? Sua escrita – por hipótese – transforma
a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar
substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros crédulos, sugestionáveis,
que fizeram o acontecimento. Isso de escrever <<O Capital>> é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça,
é outra. E nem sequer você escreveu <<O Capital>>. Não é todos
os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a
regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da
operação.
Claro, você aprovou as valentes
ações dos outros, sem se dar ao incomodo de praticá-las. Desaprovou as ações
nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhes os efeitos assim é fácil manter a consciência
limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que
costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida
pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio. De Senhor
dos Assuntos, passar a espectador enfastiado do espetáculo. Tantos fatos
simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de
vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples pai de olhos e uma
fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto
sucede outro, num mecanismo de monotonia...explosiva. Na hora ingrata de
escrever, como optar entre as variedades de insólito? E quer dizer, que não
seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir
ou ruminar, se não nos concedem tempo para isto entre dois acontecimentos que
desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela
incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é
comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os
temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira
pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou
orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve
obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto,
aí está você, cosmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de
sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para
você, porque ao assunto deve corresponder certo numero de sinaizinhos, e você não
sabe ir, além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os
intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntanto, assuntando...
Carlos Drummond de Andrade, in “
O Poder Ultrajovem”